BOCAPIU

A Incompletude do Ser

A Incompletude do Ser

Por Gelson Vieira em , Barreiras, Bahia.

Ao amanhecermos em cada dia e durante todos os momentos e instantes subsequentes, aprendemos coisas novas. E, ao mesmo tempo avaliamos os nossos saberes e ampliamos nossos conhecimentos. É a escola da vida que a assim nos faz e refaz.

Esta conversa amanhecida, começa a ganhar corpo e alma no alvorecer de um domingo do décimo terceiro dia do mês que antecede o ano de dois mil e vinte um. Tem seus pressupostos ancorados em pessoas que não mais existem concretamente. Mas, que se eternizaram e agora são em essência, vivem na hodiernidade. Os senhores a que me refiro são de diversos lugares do mundo e viveram em épocas díspares. Mas, algo os tornaram iguais além de ser gente como a gente.

Sócrates, o primeiro referencial dessa conversa matinal afirmou que de uma assertiva tinha autoridade: “sei que nada sei”. Ao analisar tal afirmativa nos parece que o autor fala de uma “situação caos”. De um vazio de conhecimento que o remete a não se contentar com o que sabe e, ou duvidar das aprendizagens que acumulou ao longo de sua existência.

Reconheceu Sócrates que é necessário que a pessoa questione os seus conhecimentos diante de toda e qualquer situação, mesmo aquela mais corriqueira. Para que não arrote pensamentos que não foram colocados à prova. Portanto, o sujeito do argumento necessita juntar informações suficientes para que possa falar da boca prá dentro, com fundamento. Mas, em certas ocasiões a recomendação socratiana passa ao largo. Entretanto, o orador de conhecimento anêmico levanta a voz como se o som das palavras proferidas acima de 50 decibéis convencesse o ouvinte.

Noutras ocasiões, o sujeito da fala não levanta a voz. Pelo contrário, o tom suave sofre variações que o ajuda no argumento em construção. Portanto, a argumentação vem carregada de palavras que fogem ao cotidiano da maioria das pessoas. Lembro-me, em tempos de juventude, dos comícios políticos partidários que aconteciam pelo interior da Bahia. Deputados que com um linguajar exótico chamavam a atenção de todos. O comentário surgia ao fimdo discurso, ali mesmo no entorno do palco armado para tal fim, ou mesmo após o comício. O assunto retornava nas rodas de conversa, em residências e, ou nos botecos entre uma dose duma aguardente cotegipana e um naco de peixe Assado. O comentário sempre vinha à tona:

- “O deputado falou bonito! Ô homem que fala bem”.

Enquanto isto, outro que estava à parte do conversê questionava:

- “Ele disse mesmo o quê?”

Daí por diante o silencio é resposta. Pois, não houve comunicação da parte do representante da casa legislativa do Estado, que proferiu discurso de conteúdo oco alicerçado em palavras sem sentido para a maioria da assistência.

O segundo personagem de nossa prosa, é um poeta mato-grossense. Trata- se de Manoel de Barros. Como ele mesmo disse em um de seus poemas: “é preciso desaprender oito horas por dia”, pois o que sabe ou aquilo que foi ensinado ou as coisas do presente não faz parte do mundo das desimportâncias. Por isso, afirmou e continua a dizer através de sua verve que: “... não sou da informática: eu sou da invencionática”. Portanto, estava sempre disposto a aprender. Nunca se fechou em conhecimentos prontos e acabados.

Manoel de Barros, entre outras e tantas desaprendizagens, nos ensina que “a gente é rascunho mesmo. Falta acabar. Eu sei. O que enriquece o artista é a sua incompletude. Poesia, qualquer arte, é um esforço do artista pra chegar perto do divino. Caminho aos trancos feito aquele mandorová que tem o apelido de midi-parmo. É um ser que vai um palmo e volta outro. E de repente vai um palmo e não volta outro. Decerto ele desconfia às vezes de algum fulgor e dá pra trás. Eu tenho medo de cometer fulgor em poesia. Amo a palavra magra sem verniz. Vou sempre lesmamente apalpando: obscuramente”.

Seguindo pelo miolo do pensar de Manoel de Barros: “A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que meaceitam como sou - eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.” Barros encurva a cabeça e se agacha à nossa frente como se fossemos genuflexórios: “desaprender oito horas por dia”.

O ano de 2020 nos trouxe questionamentos sobre os conhecimentos da ciência, saberes até então congelados sobre como tratar dum certo vírus. Sacudiu a todos sobre nossos comportamentos que só mesmo o termo da vida é capaz de ensinar para aqueles que ficaram as lições que o morto não pode jamais desfrutar.

O serviço de alto-falante do Cine Plaza, antigo cinema em Barreiras BA, foi aos poucos sendo substituído por outras tecnologias e, mais presentemente estamos atônitos de tantas e diversificadas informações escritas/digitadas, em voz e por imagens. As redes sociais aclopadas à internet são o alto- falante da sociedade de agora. Por elas, chegam noticias desqualificadas e sem fundo de verdade. São assuntos que não suportam um mínimo de racionalidade. Noutra ponta essas mesmas redes nos entopem de propaganda comercial e nos apresentam produtos e serviços de qualidade questionáveis. Se não, nos iludem e, a partir do imbróglio são construídas “verdades” que alteram comportamentos e hábitos da maioria da sociedade. E, até alteram o resultado do voto nas eleições partidárias.

Ideias falsas travestidas de verdade sempre existiram. Canais de comunicação ganharam sofisticação. A construção do discurso foi qualificado pelo uso das imagens. Mas, sempre nos restará ao consumir ou (re)produzir noticias e entretenimento a responsabilidade de questionarconteúdos e fontes. Pois, fica a recomendação de que nada sabemos e por isso, é necessário desaprender oito horas por dia, senão mais que isso no sentido de contribuirmos com o desenvolvimento de nós mesmos, dos outros e da comunidade. Pois, nem tudo que reluz é ouro.

Gelson Fernandes Vieira nasceu em Cotegipe BA. É gestor cultural, pedagogo, fundador do Centro de Cultura e Educação Popular – CECEP. Foi representante Territorial de Cultura pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia no Território de Identidade da Bacia do Rio Grande. Estudou Projeto Cultural com ênfase em Pastoral da Cultura pela PUC Minas. Foi coordenador municipal de cultura na cidade de Barreiras e, é assessor do Ponto de Cultura Flor do Trovão em Barreiras. Instagram: @gelsoncultura, e-mail: gelsoncultura@gmail.com.